Ser sempre em tudo

Sou em mim todas as pessoas, lugares e momentos a entrarem pelos poros. Sou as experiências, as devastadoras e as regeneradoras, os voos rasos e a asfixia estratosférica. Vejo através da pele, para lá da aparência, aquilo que mora depois de tudo o que é imposto pela superficialidade frásica das fases de um encantamento precoce. Abreviaturas de uma curiosidade incandescente, uma novidade que falece cedo por falta da substância. Se posso ser tudo, não sou isso. Sempre que posso, ultrapasso esses limites que me circunscrevem, e posso sempre. Sempre que me permito, contorno essas meras formas de subsistência, e permito-me sempre. Sempre que vivo, derrubo essas barreiras de aço a obstruírem a respiração absoluta de um sentir inteiro, e vivo sempre.

Sou pedra-pomes a querer ser mármore. Sou tanta coisa no meio de coisa nenhuma. Escrevo mais do que digo, digo menos do que sinto, sinto mais do que escrevo. Sou um apaixonado desregrado por tudo o que me faz pensar. Sou, ainda mais, um louco incondicional de tudo o que me faz amar. Porque é só assim que se vive, a mergulhar em apneia em todos os instantes que passo acordado. E sempre que acordo, é para sentir com cada célula, a viver para estar quase morto, a morrer para não estar quase vivo, e acordo sempre.

Construí pontes de ligação direta entre os axónios e o miocárdio. Sou pulsação intelectualmente transmissível. Sou os meus dias todos expansíveis à proporção da intensidade de cada segundo. Sou uma linha paralela ao tempo que me foge. Agarro e espremo a vida nos dedos até à última gota. Trago tudo numa caixa aberta a três centímetros do peito. E sinto muito por quem não sente, quem não entende que isto só faz sentido se fizer sentir, se for intenso, a atravessar a aorta em excesso de velocidade. Eu sinto com tudo, sem medo e sem culpa de ser alma vadia, fugitiva de tudo o que não entope as artérias. E eu vou, assim que morro, para renascer de novo em outro canto. Porque depois da crosta há sempre outra casca, outro corpo, outro amor, outra vida. Mas sempre o mesmo, mesmo não sendo já o que era antes. Sempre eu, mutável por tudo o que me tocou, por tudo o que me acrescentou, por tudo o que sou, sempre.

Eu, a calcar os fios estreitos das sensações, trilhos forjados no ferro fundido da razão e do coração. Assim sou, uma expressão plena de quem vive com a liberdade de poder ser gente, humano, animal racional movido a emoções e enganos. Imperfeito, sempre. E sempre que me livro das cordas da convicção cega tenho a certeza de nada, e sou livre, sempre.

sersempreemtudo_obohemio

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