Carta à memória

Não me roubes o tempo que guardei para destilar as insónias do passado. Lembranças que arrumo em gavetas de madeira envelhecida, numa idade onde ser era ser-te. Onde o amor se apagou numa mancha de cinza, um erro traçado por cima, a tinta permanente. Tento esquecer que o sentimento foi um equívoco, que te quis mais do que a verdade que trazias escrita nos olhos.

Relembro agora que os pássaros tinham um canto de paraíso, quando passava as mãos pelos teus cabelos e o mundo passava lento pelas horas. Então escrevo-te para que me devolvas a ti, que por entre expressões sem sentido, frases inacabadas, quiseste fugir. Infrutífero, quando ainda me sinto a deitar sobre o teu cheiro a cada raio de lua e passo leve as minhas mãos perdidas pelo sítio onde te sonhava. Estas minhas mãos famintas do teu corpo estão gastas e sujas, como as páginas de um livro deixado à sorte de não ter quem o leia. Estas minhas mãos mendigas choram agora, num lamento inútil, o que escrevo ao te lembrar. E são estas minhas mãos exiladas de ti que ditam palavras em lágrimas que escorrem dos dedos.

É triste o texto, porque assim se fizeram os dias. Podia mentir e mentindo dito utopias em que ainda toco a tua pele. Lê o meu amor em pedaços de mim que vêm incendiar a minha dor e procurar encontrar-te, algures prendida nas palavras que receaste dizer. Chegam hoje aos meus dedos e traçam linhas de desejo, as memórias de ti em gotas que tocam o verbo e recordam. Numa página em branco, desenham o ar que nos abraça, em noite tingida de ilusões.

Caem as cinzas do que se foi nos versos que já não são, consumidos pelo relógio. Cai o verbo sem-abrigo, cuspido pela abstração do teu rosto, que amassou o meu corpo e me prendeu às amarras do teu jeito. Foram lâminas de perceção que soltaram a verdade e me feriram de evidência. Foram disparos de indiferença, no gatilho cru de paixão que premiste sem pensar. Foste tu, quem não leu a história que tentei contar. Foste tu, quem queimou as folhas e me roubou o verbo que já não posso recordar.

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