Anatomia de uma ficção: Pele

Pede-me a pele e eu dou-te cada centímetro exterior, para que possas ver o teu reflexo a sangrar por dentro. Talha-me a carne, esculpida em desejo. Que seja isso apenas, aceito. Se o preceito for esse. Se for só isso que nos resta, que seja só isso que nos cresça, agora que me resta uma casa devoluta, vandalizada pela loucura carnal, evaporada em mais um jogo de lençóis que jazem virgens de nós.

Subsisto numa cidade vazia, por onde arrasto os meus olhos extintos dos teus. E são tão débeis os meus olhos quando não vestem os teus… Vejo corpos… mais corpos… tantos… São terrenos desabitados numa rota premente para chegar à rotina. E eu, cheio de pressa para sair da minha… E eu, cheio de pressa para entrar na tua.

Só depois da pele é que se respira plenamente. Abertamente desimpedidos, os pulmões expandem-se para deixar entrar o teu beijo e retraem-se para o abraçar. Abraçar o teu beijo, para sempre, segurá-lo na pele, firme, com a força dos oceanos – fundos, densos, imensos. Tatuar o teu beijo para sempre, ou sempre que te imagino, sempre que me arrepio, sempre que dentro de mim te respiro. E imagino-te sempre, e arrepio-me sempre, e respiro-te, para sempre.

Palpita-me uma visão de abismo, nascido das entrelinhas de um embate exonerado. Exasperado, grito que já não me lembro de te amar. Mas quem acredita nisso? É óbvio que só me permaneces tu e a puta da realidade diz-me todos os dias que já não estás. A realidade fez-se puta depois de ires, sabias? A vida fez-se puta depois de ti. Ninfomaníaca, a foder-me as horas todas depois de nós.

Disse-te tantas vezes que te queria sempre, que a minha pele é um órgão feito de ti, toda e completa em mim. Mas a realidade, essa puta, arrancou-te de mim, com pinças de verdade, a sangue frio. Sou retalhos em carne viva, porém mais morta do que viva, embora sobreviva. E que merda é sobreviver, apenas. E que merda é saber que a tua pele será de outro, quando era suposto sermo-nos para sempre. Ainda somos sim, mas já só somos em mim. E ninguém suporta ser sozinho.

Sabes que és a personagem principal na película que vai rodando na tela das minhas ficções, não sabes? Uma sucessão contínua das imagens que me ficaram, que me sobreviveram a rastejar por entre os poros. Porosas memórias. Uma projeção tua a fazer-me relembrar que vives para além de nós. Uma projeção abaixo da pele, profunda pulsação soturna. És artéria e coração, a sobreviver-me em solidão.

Agora que me deito noutra pele, quero que saibas que esta pele que me cobre ainda cobre o que te sinto; que cada mulher que lhe toca, toca-te; que cada arrepio é teu; que ainda és dona e senhora de cada orgasmo meu; que, por dentro, as paredes ainda estão tingidas de ti e que tu ainda respiras em cada espaço. Acima de tudo, quero que saibas que eu já só expiro a cada passo.

E se chegares agora, não me olhes agora. Já não sou eu, agora. Sou de tantas e sou só. Visto uma pele de mentira, asfixiada em vícios que não entopem as fissuras deixadas numa morada dissecada de nós. Podem vir todas as peles do mundo, podem cobrir os lençóis com todos os orgasmos do mundo; será sempre a tua, será sempre o teu, o sítio onde me pertenço.

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