Anatomia de uma ficção: Ossos

Não sei se já te disse, mas todas as manhãs são armas carregadas com o teu nome. Todas as noites são trincheiras a acumular túmulos devolutos, baseados em factos reais. Ficaram-me os ossos no caixão, ficou-me o esqueleto da casa. Tudo é pó, exceto o que me faltas. Estás-me nos ossos, és-me os ossos. E a tua ausência faz-se de uma montanha calcária, rocha dura a triturar-me o sonho.

Quantos armistícios peço ao mundo para apaziguar um abraço em ruínas? Há demasiado fogo para cessar e não há paz para quem perdeu o lar. Sou terra de ninguém se não for teu. Ocupa o que te pertence, se faz favor. É imperativo que desrespeites todas as convenções e tratados, e invadas as fronteiras que nos separam. Dispara todas as balas que te trazem dentro, eu quero é morrer no teu corpo. Perfura-me a omoplata, estilhaça-me o tórax. Mata-me de uma vez, só para poder nascer outra vez. Reivindica todas as vertebras, cada fragmento calcificado pelo teu abandono. Vem agora, no momento em que a lua perdeu a vergonha e há um corpo deserto, tombado em duas doses de delírio, à espera de mais uma sequela de demência ficcionada pela ofegante fricção. Sem noção, sou só chama imensa a queimar florestas de ilusão.

É uma sangria, olhar a manhã e não te ver chegar, a não ser por dentro. Corres por dentro e eu morro de dentro. É assim que não se vive, quando ainda és o que foste sem ser mais, a não ser nos ossos e no resto. Nos restos que me sobrevivem, mendigos de um pedaço teu que não chega, que não me chega. És mais do que uma parte, és o tudo que se parte quando partes. És junção: pele, carne e osso. És amor, isso que é tanto e não está. Isso que é tudo e não vem. És corpo e alma, e o mais que houver depois disso, depois disto. Mas tu não estás. Mas tu não vens. Não há aqui de mim o que carregas em ti. A física proíbe, não se consegue estar em dois lugares ao mesmo tempo. Foste, fui. Nem estas palavras inúteis te trazem, nem o verbo gasto te arranca para o lado de fora. Sou paralisia, membrana espessa da noite que cai desalmada a partir-me os ossos. Sem o teu mar, serei fóssil em erosão. Uma poeira asfixiante, desfeita em ossadas enfraquecidas pelo ar rarefeito que elege a utopia, num vale perdido entre dois continentes de espera. O que me resta agora que se apagam as luzes de menos um dia para reaver os teus olhos? Nada.

Por isso, se puderes, vem. É que há, no escuro da tua ausência, nestas minhas palavras inúteis, um silêncio maior que eu. Algo que começa antes da carne e vai para lá da pele. Há, nas pedras de mais um dia de neblina, uma lasca de lágrima. São gotas de orvalho ou são as árvores que choram o outono? És tu, um rio fundo e revolto em tudo o que não fomos, um caudal de verdade onde se afunda a saudade. Por isso, se quiseres, vem. Porque há, nestas noites fúteis da carne, um desejo maior que a realidade: tu. E eu preciso tanto encontrar-me nos teus braços, preciso tanto continuar-me nas tuas mãos. Então, se puderes, vem. Esquece a realidade e vem, agora. É que ainda há duas almas inteiras para unir.

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