A vida não nos quer assim

Seis da tarde e o sol ainda franzia o lago trilhado em barcos de papel. E a esplanada do parque a contar as vidas que nele acontecem, preparava-se para apresentar mais uma das suas histórias milenares.

Eram dois a quererem ser um. Ele nem se atreveu a sorrir para ela. Mas ela sorriu nele. Naquele momento, deixou os receios do naufrágio e embarcou nos seus olhos.

“Castanhos, mais ao menos. Nem sempre. Depende.”

Ela, a diluir o açúcar no café, sem saber que lhe diluía o presente também. Tudo o que existia nela era um mistério, um enredo rendilhado a convidar a aventura. Porque é que os olhos seriam diferentes? Rebeldes como ela, não se deixavam definir, nem agarrar, como é óbvio. Escapavam pelos dedos como a água do lago, a refletir-lhe o sorriso, a maior crueldade que ela podia fazer. Ele cegou para nascer outra vez. Ela calou para não morrer outra vez. Eram ainda demasiado novos para escreverem romances “felizes para sempre” só com duas personagens. Deixaram-se ir, o tempo que os viesse buscar, quem sabe um dia. Amou-a enquanto ela deixou, depois deixou-o e foi-se embora. Fugiu de uma história igual a tantas outras e os dois fugiram com ela.

Encontrou-a mais tarde, numa tarde que apareceu tarde demais. Eram agora dois (des)conhecidos que a vida fez o favor de (des)conhecer. Estavam bem (até agora), andavam felizes (parecia). A vida não nos quer assim:

“És tu?” – o olhar de espanto dele.

“Já não.” – a pesarem nela todos os anos fugitivos.

“Já não, também.” – confirmação dele, numa luta feroz a querer render-se ao “eu ainda sou”.

Parecia o que bastava para cada um seguir nos atalhos que abreviaram o conto. Só que ela sorriu nele, de novo:

“Amei-te um dia, sabias?”

Assustava-a o verbo, nunca o disse. Pensou nele (agora), quis conjuga-lo no presente (pareceu) e, com o passado a escorrer-lhe da alma, fez-se razão:

“Eu sei, um dia.”

Não disseram mais nada, porque não havia mais nada a dizer, só para fazer, e nenhum dos dois fez. Receavam demais abrir feridas que nunca cicatrizaram completamente. Ele, num sopro:

“Foi bom rever-te.” – com o passado a querer-se presente, de novo.

No ouvido dela tudo lhe soou a uma combinação secreta de números que abre uma porta fechada há anos para que ninguém entrasse. Ele entrou e ela fugiu com os dois, de novo:

“Igualmente. Até um dia.” – ela, com as palavras presas no peito.

A vida não nos quer assim. Até um dia, de novo.

avidanaonosquerassim_obohemio

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