A vida é um sorriso de criança

Olha para o sorriso de uma criança. Diz-me se não é ali que sabes que existem todas as possibilidades da vida.

Eram tantos os sonhos que vinham brincar lá no bairro, depois da escola. E andávamos todos descalços das responsabilidades dos adultos, nós, os miúdos, os inconsequentes, e os sonhos. Vida boa, digo-te. Corríamos com uma força embrulhada na fome de quem quer tudo o que existe no horizonte. Ou era isso ou era o encanto de quem tem o mundo todo à nossa espera e está cheio de pressa para chegar até ele. Era uma questão de educação, não queríamos fazê-lo esperar. Naquela altura as coisas eram diferentes. Havia uma certa ética, que se aprendia desde pequenos e incluía tudo, desde a mesa de jantar até à ambição e aos sonhos. Principalmente os sonhos, que eram tantos.

Mas podia também ser a impaciência de ter demasiada vida em nós e à nossa frente. Talvez fosse isso tudo e mais o tudo que ainda não conhecíamos. Talvez fosse pelo que desconhecíamos que íamos. A esta distância já nem sei. A memória já não consegue andar para tão longe. Cansa-se a meio do caminho. A gente fica cansados e a memória vai perdendo a força nas pernas, sabes? São as horas todas que nos pesam. Um dia vais perceber esta coisa das horas. Esta coisa do tempo. Mas havia sempre o sorriso de quem sonha com tudo o que lhe entra nos olhos. Pouco importava a canela esfolada, era um corte limpinho e a bola continuava a rolar. Era preciso era marcar golo!

Mas hoje, as coisas já não são bem assim. A bola já não rola, a canela já dói quando sangra e os sonhos… Os sonhos já não se sonham. E de todas as calamidades que a vida vai oferecendo, essa é a maior catástrofe de todas – os sonhos que não mais se sonham. É uma tristeza maior que o Benfica perder a final da taça nos descontos, digo-te. Os sonhos a não se sonharem, somos nós a morrer por dentro. Parece que a meio disto alguém os mata, ou se suicidam. Nem um bilhete fica para trás, uma explicação qualquer para entender o que não se encontrou aqui. Aquele pedaço prometido de tudo, que afinal desvaneceu ou foi engolido por esta coisa chata que os adultos chamam de realidade.

A vida era tão melhor quando éramos inocentes. Agora já sabemos dos crimes todos que existem e que nos encerram. O maior deles todos é a matança do sonho e do sorriso, digo-te. É uma chacina bárbara, matar o sorriso. Mas nós é que somos os culpados, porque não o deixamos viver nas coisas que existem. Ficamos acorrentados ao supérfluo, às coisas chatas dos adultos. E depois temos outras preocupações. É a conta da água, da luz, do gás. A prestação do carro, da casa, dos móveis. O dinheiro que não estica e o trabalho que nos encolhe. Nisto tudo, onde é que sobra espaço para o sorriso? Só em tudo o resto que vale a pena, tudo o resto que importa. Mas conseguimos lá agora sorrir no meio das nossas vidinhas quotidianas, cheias de problemas rotineiros? Isso é um talento que apenas dura enquanto nos dura a infância. Agora tudo nos dói e nada nos sorri.

Os adultos são uma chatice. Vida boa é ser criança todos os dias, digo-te. Quando éramos crianças o sorriso nascia nos detalhes. Quando éramos crianças o amor não era isto, o sonho não era isto, a vida não era isto. Hoje em dia o amor é outra coisa. Os sonhos são outra coisa. O sorriso é outra coisa. A vida é outra coisa.

Mas a vida podia muito bem ser apenas um sorriso no rosto de uma criança. E é.

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