A inevitabilidade do erro

Proponho que se armem cavaleiros todos os que reconhecem o erro. Que sejam distribuídas as mais altas condecorações aos errantes assumidos. Que se elevem vielas, ruas, avenidas, praças e pracetas em sua homenagem. São uns autênticos senhores e senhoras do reino humano.

Reconhecer o erro é seres um pouco mais nobre do que eras antes. A cada erro reconhecido ficas mais próximo de te conhecer. A cada erro reconhecido ficas mais próximo da nobreza. Reconhecer o erro é descobrir mais uma parte de ti. E isso assusta quase tanto como saber a data e hora exata da nossa morte. Mas pensa se há algo mais libertador do que saberes exatamente a data e a hora da tua morte. Menos uma preocupação, menos uma corrente a apertar-te a vida. E agora já sabes que podes respirar e devorar todos os dias que te restam. Devorá-los com a fome insaciável de quem sabe que isto um dia acaba.

O dia em que sabes quando vais morrer é a data do teu segundo nascimento. E agora já és livre para viver sem receio do erro. Mesmo que custe, mesmo que doa. E dói como tudo. Enfrentar o erro é o suicídio de tudo o que julgavas ser. E dói como se tu te rebentasses por dentro. Erraste e não eras isso. Erraste e foste isso. Mas reconheceste e não serás mais isso. Reconhecer o erro é aprender e não é para todos. É preciso uma certa dose de coragem. Reconhecer o erro é saltar as masmorras do corpo e sair de nós, é ver-se do lado de fora e assumir que somos irremediavelmente imperfeitos.

Mas há esta cultura paralisante da humilhação de quem se deu ao erro. De quem, sem medo, pisou o risco, foi para além dele e caiu. Valoriza-se quem não falha, simplesmente porque não age. Entregam-se louvores e palmadinhas nas costas a quem escolhe o facilitismo da estrada alcatroada. Veta-se ao esquecimento os que foram pelo mato bravo do incerto e falharam. Entende-se que o sucesso é a não ação ou a ação com todas as garantias prévias da conquista. E é tão mais cómodo a proteção das paredes da nossa zona de conforto.

Crescemos, mas continuamos crianças com medo do escuro. Evitamos o conflito exterior e interior porque temos medo do medo de perder tudo o que temos, e de perder tudo o que não temos também. Escolhe-se a poltrona da mediocridade imóvel porque é nela que estão as raízes da segurança que é nunca ter de errar. Chamam-lhe vitória, mas é apenas resignação. Não vás porque depois há a merda do erro. Não saias do que sabes porque depois pode dar merda e os outros não vão entender, muito menos perdoar. É melhor que pensem que somos perfeitos, do que fazer alguma coisa que exponha a nossa farsa e nos torne humanos. Nada podia ser mais errado. E acreditares nisso é o maior erro que podes cometer.

O maior erro de todos é pensares que podes viver sem errar, acredita. Estamos pesados de defeitos e cada pessoa mede-se em parte pela sua capacidade de reconhecer-se para se conhecer. Cada pessoa é do tamanho dos erros reconhecidos, dos erros assumidos, dos erros aprendidos e não mais repetidos. Cada pessoa é do tamanho das tentativas de acertar que não deram em merda nenhuma. Foste, agiste, tentaste e não deu em merda nenhuma. Mas deu. Aprendeste. Mas doeu. Mas repara se não és melhor agora do que antes. És. Só quem perde sabe o que perdeu, só a dor nos ensina a ser melhores. E um dia ainda ganhas. Se há algo que é inevitável é que um dia ainda ganhas. Um dia ainda és recompensado por esse teu descaramento em atirar-te aos lobos e envergar as cicatrizes do erro como medalhas de honra. Soldado da guerra que travas porque nasceste para viver desde a pele até ao fundo dos ossos.

Posso errar, tenho esse direito incrustado na minha condição de homem. Por dentro sou carne e falhas. Sou a história das batalhas vencidas, mas sou mais o resultado das minhas múltiplas derrotas. Tenho o direito ao erro e sei que vou usá-lo outra vez. Aceito a inevitabilidade do erro. Posso errar e vou errar novamente. Tenho a certeza que sim. Essa é, aliás, a única certeza que tenho – a certeza de que erro com toda a incerteza de quem tenta, de quem arrisca, de quem é somente homem. Só não erra quem não vive e não vivendo não sente. E não sentindo já está morto. Só não erra quem já está morto. Eu erro porque vivo. Erro porque sinto e sinto quando erro. Eu erro, sim. E continuarei a errar, certamente. Erro para ser melhor a cada erro. Erro as vezes que forem precisas, para me acertar as vezes que forem necessárias. E quem nunca errou que atire a primeira hipocrisia.

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